Segunda, 10 de Setembro 2012                                
                            
                        Teoria do adimplemento substancial limita o exercÃcio de direitos do credor
                        
                        Como regra geral, se houver descumprimento de  obrigação contratual, “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução  do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos  casos, indenização por perdas e danos”, conforme dispõe o artigo 475 do Código  Civil (CC). Entretanto, a doutrina e a jurisprudência têm admitido o  reconhecimento do adimplemento substancial, com o fim de preservar o vínculo  contratual. 
Segundo a teoria do adimplemento substancial, o credor fica  impedido de rescindir o contrato, caso haja cumprimento de parte essencial da  obrigação assumida pelo devedor; porém, não perde o direito de obter o restante  do crédito, podendo ajuizar ação de cobrança para tanto.  
OrigemA 
substancial performance teve  origem no direito inglês, no século XVIII. De acordo com o ministro Paulo de  Tarso Sanseverino, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o  instituto foi desenvolvido “para superar os exageros do formalismo exacerbado na  execução dos contratos em geral”. 
Embora não seja expressamente prevista  no CC, a teoria tem sido aplicada em muitos casos, inclusive pelo STJ, tendo  como base, além do princípio da boa-fé, a função social dos contratos, a vedação  ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa. 
De acordo com o  ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do STJ, “a insuficiência  obrigacional poderá ser relativizada com vistas à preservação da relevância  social do contrato e da boa-fé, desde que a resolução do pacto não responda  satisfatoriamente a esses princípios”. Para ele, essa é a essência da doutrina  do adimplemento substancial. 
Boa-féO princípio  da boa-fé, que exige das partes comportamento ético, baseado na confiança e na  lealdade, deve nortear qualquer relação jurídica. De acordo com o artigo 422 do  CC, “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,  como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. 
Segundo  Paulo de Tarso Sanseverino, “no plano do direito das obrigações, a boa-fé  objetiva apresenta-se, especialmente, como um modelo ideal de conduta, que se  exige de todos integrantes da relação obrigacional (devedor e credor) na busca  do correto adimplemento da obrigação, que é a sua finalidade última”. 
No  julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.202.514, a ministra Nancy Andrighi, da  Terceira Turma do STJ, afirmou que uma das funções do princípio é limitar o  exercício de direitos subjetivos. E a essa função aplica-se a teoria do  adimplemento substancial das obrigações, “como meio de rever a amplitude e o  alcance dos deveres contratuais”. 
No caso objeto do recurso, Indústrias  Micheletto e Danilevicz Advogados Associados firmaram contrato de serviços  jurídicos, que previa o pagamento de prestações mensais, reajustáveis a cada 12  meses. 
Durante os seis anos de vigência contratual, não houve nenhuma  correção no valor das parcelas. A contratada optou por renunciar ao reajuste,  visando assegurar a manutenção do contrato. Entretanto, no momento da rescisão,  exigiu o pagamento retroativo da verba. 
Nancy Andrighi explicou que nada  impede que o beneficiado abra mão do reajuste mensal, como forma de persuadir a  parte contrária a manter o vínculo contratual. 
Nessa hipótese, haverá  redução da obrigação pela inércia de uma das partes, ao longo da execução do  contrato, em exercer direito, “criando para a outra a sensação válida e  plausível de ter havido a renúncia àquela prerrogativa”, disse. 
Por  isso, o princípio da boa-fé tornou inviável a pretensão da firma de advocacia de  exigir valores a título de correção monetária, pois frustraria uma expectativa  legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual, explicou  Andrighi. 
Função social 
Para o ministro Luis  Felipe Salomão, o contrato deixou de servir somente para circulação de riquezas:  “Além disso – e principalmente –, é forma de adequação e realização social da  pessoa humana e meio de acesso a bens e serviços que lhe dão dignidade.”  
“Diante da crescente publicização do direito privado, o contrato deixou  de ser a máxima expressão da autonomia da vontade para se tornar prática social  de especial importância, prática essa que o estado não pode simplesmente relegar  à esfera das deliberações particulares”, disse o ministro, no julgamento do REsp  1.051.270. 
BBV Leasing Brasil ajuizou ação de reintegração de posse  contra um cliente, em razão da falta de pagamento de cinco das 36 parcelas  devidas em contrato para aquisição de automóvel. Como não obteve sucesso nas  instâncias ordinárias, a empresa recorreu ao STJ. 
Salomão entendeu que a  teoria do adimplemento substancial deveria ser aplicada ao caso, visto que o  cliente teria pagado 86% da obrigação total, além de R$10.500 de valor residual  garantido (VRG). 
De acordo com o relator, a parcela da dívida não paga  não desaparecerá, “o que seria um convite a toda sorte de fraudes”, porém o meio  de realização do crédito escolhido pela instituição financeira deverá ser  adequado e proporcional à extensão do inadimplemento – “como, por exemplo, a  execução do título”, sugeriu. 
Ele explicou que a faculdade que o credor  tem de rescindir o contrato, diante do inadimplemento do devedor, deve ser  reconhecida com cautela, principalmente quando houver desequilíbrio financeiro  entre as partes contratantes, como no recurso julgado.  
CarretasCaso semelhante foi analisado também  pela Terceira Turma, em junho deste ano. Inconformada com o débito de seis  parcelas, do total de 36, correspondentes a contrato cujo objeto eram 135  carretas, a empresa Equatorial Transportes da Amazônia ajuizou ação de  reintegração de posse contra Costeira Transportes e Serviços. 
No REsp  1.200.105, a Equatorial pediu a extinção do contrato, sustentando que o fato de  faltar apenas um quinto do valor a ser quitado não servia de justificativa para  o inadimplemento da outra contratante. 
O ministro Paulo de Tarso  Sanseverino, relator do recurso especial, deu razão à Costeira e aplicou a  teoria do adimplemento substancial. “Tendo ocorrido um adimplemento parcial da  dívida muito próximo do resultado final, limita-se esse direito do credor, pois  a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma iniquidade”, disse.  
Ele afirmou que, atualmente, o fundamento para aplicação da teoria é o  artigo 187 do CC. De acordo com o dispositivo, o titular de um direito que o  exerce de forma a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,  pela boa-fé ou pelos bons costumes, comete ato ilícito. 
Na hipótese,  Sanseverino explicou que o credor poderá exigir seu crédito e até indenização,  mas não a extinção do contrato. 
Imóvel rural 
Em  agosto deste ano, a Terceira Turma reconheceu o adimplemento substancial de um  contrato de compra e venda, cujo objeto era um imóvel rural. Do valor da dívida,  R$ 268.261, o comprador deixou de pagar, à época do vencimento, apenas três  parcelas anuais, que totalizavam R$ 26.640. Esse valor foi quitado  posteriormente. 
“Se o saldo devedor for considerado extremamente  reduzido em relação à obrigação total, é perfeitamente aplicável a teoria do  adimplemento substancial, impedindo a resolução por parte do credor, em favor da  preservação do contrato”, afirmou o ministro Massami Uyeda (AREsp 155.885).  
Enriquecimento ilícito 
Quando o comprador, após  ter pagado parte substancial da dívida, torna-se inadimplente em razão da  incapacidade de arcar com o restante das prestações devidas, tem a possibilidade  de promover a extinção do contrato e de receber de volta parte do que pagou, sem  deixar de indenizar o vendedor pelo rompimento. Esse foi o entendimento da  Quarta Turma, ao julgar o REsp 761.944. 
Planec Planejamento Educacional  firmou contrato de compra e venda com a Companhia Imobiliária de Brasília  (Terracap) para aquisição de um imóvel, localizado em Águas Claras (DF). A  cláusula relativa ao pagamento previa que 30% do valor do imóvel deveriam ser  pagos a título de sinal. 
O tribunal estadual considerou que o comprador,  por ter dado causa à rescisão contratual, não tinha direito ao ressarcimento de  parte substancial do valor pago ao vendedor. Entretanto, o ministro João Otávio  de Noronha, relator do recurso especial, entendeu que o acórdão deveria ser  reformado. 
Para o ministro, o pagamento inicial do valor devido deixa de  ser caracterizado como sinal quando representa adimplemento de parte substancial  da dívida. “Assim sendo, é incabível a retenção de tais valores no desfazimento  do negócio, sob pena de enriquecimento ilícito do vendedor”, disse. 
Ele  citou precedente, segundo o qual, “o promissário comprador que se torna  inadimplente em razão da insuportabilidade do contrato assim como pretendido  executar pela promitente vendedora tem o direito de promover a extinção da  avença e de receber a restituição de parte substancial do que pagou, retendo a  construtora uma parcela a título de indenização pelo rompimento do contrato”  (REsp 476.775). 
Exceção do contrato não cumprido  
No julgamento do REsp 883.990, a Quarta Turma analisou um caso  em que a teoria do adimplemento substancial foi afastada. Um casal ajuizou ação  ordinária, visando a reintegração de posse de um imóvel, situado na Barra da  Tijuca (RJ), e a consequente rescisão do contrato milionário. 
O casal de  compradores havia deixado de pagar mais da metade do valor do imóvel,  aproximadamente R$ 1 milhão, em razão de os vendedores não terem quitado parcela  do IPTU, de R$ 37 mil. 
Para suspender o pagamento das prestações  devidas, o casal invocou a norma disposta no artigo 470 do CC – exceção do  contrato não cumprido –, argumentando que a responsabilidade pela quitação dos  débitos fiscais incidentes sobre o bem era dos vendedores. 
De acordo com  o relator do recurso especial, ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado), há  uma flagrante desproporcionalidade entre o descumprimento parcial dos vendedores  com a quitação dos débitos fiscais e a retenção das parcelas devidas pela compra  do imóvel. 
Ele entendeu que a falta de pagamento do IPTU não acarretou  diminuição patrimonial para os compradores, o que serviria de justificativa para  que estes deixassem de cumprir sua obrigação. Mencionou que o valor das  prestações supera em muito o quantitativo referente ao imposto, que, inclusive,  poderia ser abatido do valor devido. 
Para o ministro, a exceção do  contrato não cumprido favoreceu os vendedores. “Há flagrante mora dos recorridos  [compradores], porque, por uma escassa importância, suspenderam o pagamento de  aproximadamente R$ 1 milhão, já na posse do imóvel até hoje mantida”, concluiu.  
Contrato de previdência 
“Para a resolução do  contrato, inclusive pela via judicial, há de se considerar não só a  inadimplência em si, mas também o adimplemento da avença durante a normalidade  contratual”, disse o ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 877.965  
Após a morte do cônjuge, uma beneficiária de contrato de previdência  privada, firmado com o Bradesco Vida e Previdência, foi informada de que o  acordo havia sido cancelado administrativamente, devido à inadimplência de três  parcelas. Conforme acordado, a beneficiária deveria receber pecúlio em razão de  morte, no valor de R$ 42 mil. 
Entretanto, seis dias após o cancelamento  pela instituição financeira, antes de ter ocorrido a morte do cônjuge, as três  mensalidades devidas foram pagas. Em razão do cancelamento, a empresa devolveu o  valor pago em atraso. Diante disso, a beneficiária ajuizou ação de cobrança.  
No recurso especial, ela alegou nulidade da cláusula contratual que  autorizou o cancelamento do contrato de seguro devido ao inadimplemento de  parcelas, sem que tenha ocorrido a interpelação judicial ou extrajudicial para  alertar o devedor a respeito do cancelamento ou rescisão do contrato.  
Para o ministro Salomão, a conduta da beneficiária “está inequivocamente  revestida de boa-fé, a mora – que não foi causada exclusivamente pelo consumidor  – é de pequena importância, e a resolução do contrato não era absolutamente  necessária, mostrando-se também interessante a ambas as partes a manutenção do  pacto”. 
Segundo o ministro, o inadimplemento é “relativamente  desimportante em face do substancial adimplemento verificado durante todo o  período anterior”, além disso, “decorreu essencialmente do arbítrio  injustificável da recorrida – entidade de previdência e seguros – em não receber  as parcelas em atraso, antes mesmo da ocorrência do sinistro, não agindo assim  com a boa-fé e cooperação recíproca, essenciais à harmonização das relações  civis”.
A notícia ao lado refere-seaos  seguintes processos: